Site Meter CASA DAS IDEIAS: CONTO: UM DIA PARA FICAR NA CAMA - Carlos Pinheiro

domingo, 1 de fevereiro de 2009

CONTO: UM DIA PARA FICAR NA CAMA - Carlos Pinheiro

PARTE I

Finalmente conseguia botar o pé na rua, depois de uma noite com insônia, briga com a mulher, um emprego que não me agradava, uma insatisfação geral em minha vida. Mas o dia era lindo, um azul bebê com nuvens brancas, suave, um sol dos tempos não mídia da ante-poluição, ante aquecimento, ante... Um sol acima de qualquer catástrofe eminente... sem pensamentos ruins, salário, sogra, mulher... Sei lá, mas, momentos arrebatadores como esse, fazem ressurgir uma pequena chama de força que reside na gente e que só sai em circunstancias muito críticas ou especiais, e esse era o caso.
Flutuando, fui em direção ao sinal e reparei uma jovem que aparentava 30 anos, gestos largos, dois meninos, ambos com cerca de 13 anos; que conversavam, e ela, se metia com risadas estridentes, segurava as mãos dos meninos nervosamente, embora aquilo não parecesse incomodá-los. Meneava a cabeça ajeitando os cabelos que o vento tirava a todo instante do lugar. Aquela imagem me irritava, achei-a meio louca, era muito cedo para já estar “chapada”. Parecia mesmo descompensada, com os meninos pela mão, gesticulando, isso não combinava com o dia... Sei lá?!... Acabei achando que era mau humor meu, implicância gratuita e resolvi olhar uns livros que estavam expostos na calçada, desses sebos de rua. Troquei algumas palavras com o vendedor e continuei em direção ao ponto de ônibus, que ainda ficava na outra esquina, atravessei e, em vez de parar, passei por ele em direção à outra esquina, onde poderia ver a praia. Precisava ver o mar. Pensei! Essa atitude, sou eu, minha cara. Criança, quando as coisas estavam muito difíceis. Notas baixas, amores acabados, bronca de pai, vontade de fugir, o mar, era o meu melhor aconselhador, amigo e leal confidente. Cresci com essa parceria e vou continuar. Agora, ele continuava lá, impecável, azul, radiante, as ondas ao estourar faziam o babado mais branco e delicado daquela colcha mágica que cobria a terra, não eram grandes e quebravam com paciência para que os olhos humanos acompanhassem e se deliciassem com aquele movimento. Minha atenção foi desviada pelo que parecia ter sido um acidente, um motociclista acabara de atropelar um garoto que agora já se levantava. Apertei o passo e aproximei-me... Puta merda, era a mulher idiota, que acabara de deixar aquele menino ser atropelado... O condutor da moto perguntava ao jovem como se sentia, ao que o garoto respondeu que estava um pouco tonto, mas que logo passaria. A mulher idiota o limpava, pois ficara ligeiramente sujo ao cair ao chão, dizia que aquilo não era nada e logo estaria bem. Aquela atitude me dava repulsa e procurei logo me afastar. Nessa hora já havia perdido a vontade de ver o mar e voltava aborrecido para o ponto de ônibus, iria finalmente para o trabalho, puto, desgostoso, sensação de mal estar... matutava o que acabara de presenciar. Que mulher filha da puta... e se aquele menino bateu com a cabeça e começa a passar mal, vai entrar em coma, aquela mulher não vai falar nada a ninguém, e talvez consiga o silêncio do outro garoto através de ameaças. Quando os pais souberem de alguma coisa, pode ser tarde demais. Se amanhã, de alguma forma, eu souber que essa criança veio a falecer, terei parte da culpa, porque vi e não fiz nada....Que merda!!!.... Estava bom demais ... Tinha que ter suspeitado que alguma coisa ia acontecer ... e esse ônibus que não vem....que merda.......minha cabeça dava voltas, minha pressão poderia estar subindo, agora só falta essa... um enfarte porque me omiti de prestar salvamento a uma criança que estava nas mãos de uma louca...besteira essa falta de ar, mãos suadas e dor na nuca nada mais é do que nervoso, estresse, mas... e, se eu tiver um enfarte fulminante ninguém vai ficar sabendo que tentei salvar aquela criança... e nada fiz, apenas porque tinha que ir trabalhar, e que não sou covarde...
Quer saber de uma coisa ? Vou voltar lá, vou lá... que se fôda o trabalho.. depois eu explico.. eu é que não vou ficar com esse negócio na consciência....se quiser me mandar embora, que mande, fôda-se... tenho filho, sei o que é isso. Se tá todo mundo banalizando as coisas, eu não, pelo menos algumas coisas não, e essa é uma delas... Vou voltar.
Cheguei ainda a tempo de ver a louca caminhando na areia e escolhendo um lugar para ficar. É agora! Vou chamar o salva- vidas para levarmos a criança ao hospital e fazermos os exames necessários, todas as verificações para constatar que não houve traumatismo craniano, ou quebra de ossos, ... etc.
Que sorte, vem um salva-vidas ali.
— Oi amigo, tudo bem? Por favor – e fui me aproximando do jovem que pareceu um pouco enfastiado com minha interpelação... ao chegar mais perto, apenas olhou-me.
— Sabe o que é... ali, — apontei em direção da mulher —
Tem um garoto que acabou de ser atropelado, mas saiu andando, entendeu, é uma criança, e nesse momento pode estar morrendo, entendeu? Se aquela criança bateu com a cabeça no asfalto, ela está morta, você esta entendendo, nós precisamos ir lá, agora, e levá-la imediatamente para o hospital.
O jovem olhava-me fixamente, meio incrédulo...
— Vamos lá! Não temos tempo a perder, daqui a pouco pode ser muito tarde... insisti.
— Peraí, meu chefe, o senhor quer que eu saia daqui, pegue uma criança que está acompanhada por um responsável e leve para o hospital?...
— É exatamente isso meu amigo... Exatamente isso, aquela mulher que você está vendo é completamente louca..... e, aquela criança pode estar morrendo.... Entendeu!? ...morrendo, e você é uma autoridade policial, não se esqueça disso, eu enquanto cidadão, estou fazendo uma denúncia grave ao senhor, e exijo que alguma providência seja tomada. Por favor!!!!! — Estava exaltado, gritando...
— Chefe, deixa eu explicar: Minha função é aqui na praia, tenho que salvar vidas, tenho que procurar crianças perdidas, se saio daqui e alguém se afoga, quem é que vai responder por isso? Quem vai dar conta? É o senhor?
— Então meu amigo, passa um rádio para um colega teu vir pra cá, porque o senhor tem que sair para prestar socorro a alguém.
— Não posso fazer isso, o rádio está com defeito e não vou sair daqui de jeito nenhum. Tá sabendo, eu já estou perdendo a paciência com o senhor... faça o favor de sair varado daqui antes que eu perca a cabeça....
— Eu vou me afastar realmente, porque estou me sentindo ameaçado... mas, olha só:... O que você imagina que alguém de terno, neste calor, de sapato e meia está fazendo aqui, se não for alguma coisa muito séria? Dá pra raciocinar um pouco?...
— Pó, aí, tem maluco pra tudo, chefe.
— Muito obrigado, volto já.
Quando dei as costas para o salva-vidas, juro que minha vontade era voltar ao ponto de ônibus e ir embora para o meu trabalho, que nesse momento me pareceu acolhedor. Olhei em direção à mulher e vi que havia apenas uma das crianças brincando. Bem... poderia estar na água. Cheguei ao calçadão, suado, cansado, sapatos sujos de areia, pasta suada pela mão. Pra ser sincero, o sentimento que tive, foi de missão cumprida — Não deu, porque não tinha que dar mesmo, que eu posso fazer?
Olha! Um camburão... Bem que eu podia...
— Ei!... ei! policial! Policial! Espera... Espera, um pouco, por favor...
A caminhonete parou um pouco a frente, o policial saltou do carro enquanto os outros três ficaram atentos esperando o que eu queria.
— Policial, é o seguinte: Acabo de presenciar uma omissão de socorro grave — Da forma que foi, poderia dizer, beira a um homicídio. Um garoto, que é menor, foi atropelado por uma motocicleta, que apesar de ter parado para prestar socorro, foi dispensado pela pessoa que estava com o menino. Pois bem, essa criança chegou a dizer à sua acompanhante que se sentia tonto, mas ela disse-lhe que logo ficaria bom, foram suas únicas palavras. O motociclista, ora, botou o pé na estrada e foi embora. Vi isso, policial, só que se esse menino bateu com a cabeça no asfalto, daqui a pouco estará morto, entende?
— Isso aconteceu há quanto tempo?
— Tem uns trinta minutos
— O senhor procurou ajuda?
— Sim, procurei com o salva-vidas daqui da praia. Disse-lhe exatamente o que falei com o senhor. “Precisamos levar imediatamente essa criança a um hospital”. Ele disse que não poderia ajudar, que seu negócio era tomar conta da praia, olhar criança e pronto... No fundo ele achou que eu sou uma pessoa meio doida... Entendeu?...
— Vamos lá, quero falar com esse cara.
— Policial... O senhor acha isso, uma boa idéia, não é melhor irmos direto ver a criança?
Não, não senhor, que é isso? Custa nada não, vamos lá, pode ficar tranqüilo, é uma palavrinha rápida.
Fiquei mais tranqüilo. Moro ali e o cara é forte, não é bom arriscar, não preciso de novos inimigos nessa altura do meu campeonato. Mas, estava coerente com que havia me proposto: eu vi um atropelamento, deixei de ir trabalhar para tratar aquela situação, não tinha sentido, ter ido embora de jeito nenhum. Estaria me remoendo e me sentindo mal se o fizesse. A temperatura passava dos 30º e começa a transpirar sob o paletó, havia suspendido as pernas da calça e afrouxado a gravata. O policial, um pouco acima de seu peso, transpirava, era calvo e via-se brotar de sua pele o suor que já lhe escorria pelo rosto, a camisa já revelava a força do calor grudando em seu ombro. Seu semblante era pesaroso. Quando o jovem salva-vidas percebeu nossa presença, reconheceu-me, virou de lado, certamente para começar a xingar da minha tataravó em diante. Mas virou-se mostrando autoridade.
— Pois não, disse com cara de poucos amigos...
— O policial pegou-lhe pela camiseta, apertando-lhe o pescoço, e jogou-o no chão, sem falar uma palavra. Em seguida, bateu-lhe na cara, mas não eram socos e sim tapas contínuos, tapas, mais tapas, sob meu olhar estupefato. Tentei ainda pronunciar uma frase do tipo – calma gente, calma gente – mas desisti quando aos primeiros ruídos, o policial me olhou.
— Pára pô, implorava o rapaz.
— Aqui, o palhaço, quando tu me ver chegando, baixa a cabeça... Seu merda... cheirador de pó do caralho... Porque tu não atendeu o moço aqui, o palhaço, me fez vir até aqui, nesse sol do inferno, pra fazer o teu serviço seu cocô, toma porrada na cara...
Nesse momento comecei a pensar para que bairro me mudaria.
O policial saiu de cima do salva-vidas, ambos estavam completamente cheios de areia, o jovem por duas vezes incinerou-me com seu olhar, mas as coisas estavam dadas, fugiu ao meu controle, agora era segurar a onda e fazer o que devia.
— Policial, a mulher é aquela ali. Só estou vendo uma das crianças, a que foi atropelada não está lá.

E fomos nos aproximando, ao chegar mais perto, vi o menino deitado. Fui me aproximando e a mulher começou a olhar-me, inicialmente sorria, depois amarrou a cara, ficou meio assustada, viu o policial, o salva-vidas, mostrou-se intrigada. Cheguei perto e disse:
— Vi perfeitamente a senhora não prestar socorro a essa criança depois de ter sido atropelado por uma motocicleta.
— Que nada moço, foi esbarrãozinho de nada e o menino tá aí... bonzinho...
— Tá vendo, policial?...essa moça não tem noção nem do que está falando... quanto mais para decidir se esse menino está bem ou não... continuei...
— Garoto, você foi atropelado pela motocicleta, não foi?
O garoto assentiu com a cabeça sem levantá-la para nos encarar.
— Você falou que estava sentindo tontura, eu ouvi... e agora como você está se sentindo?... a tontura continua?...
— Só tá doendo um pouco aqui -—
E passou a mão pela lateral da barriga....
— Policial, esse menino deve estar com as costelas quebradas e pode a qualquer momento perfurar um de seus órgãos, inclusive os vitais e morrer agora mesmo....
— O senhor é medico, é ? — perguntou-me a acompanhante do garoto.
— Não senhora, não sou, mas não sou cego
— Então, como é que o senhor tá falando esse monte de coisa aí, o senhor parece é maluco, isso sim... Vamos sair daqui, vamos meninos, vamos pra outro lugar da praia... esse moço tá procurando é confusão comigo, e eu quero é pegar meu sol sossegada...
A mulher havia levantado e segurando os garotos pela mão, começava a sair andando pela areia... Fui atrás, falando.
— Não, a senhora não vai embora agora não. A senhora vai é para um hospital comigo — Vamos policial, me ajude aqui por favor. Segurava firme na mão da moça que segurava também as crianças e que tentava desvencilhar-se da minha. Produzimos uma balé louco de vais e vens na areia... O guarda vida, com as mãos na cintura, apenas olhava. O policial intervindo, carregava a moça, tirando-a do chão, enquanto eu conduzia as crianças, sempre falando para o atropelado que estava tudo bem. Ao percebê-lo meio assustado disse-lhe que era do governo e buscava pessoas que foram atropelados na cidade para levá-las para fazer exames. Esse era meu trabalho....
— Eu não vou para hospital nenhum não senhor... me deixa... - voltou a falar a mulher.
— Policial, vamos em sua viatura para facilitar o transporte.
Finalmente vencíamos a areia escaldante. Apesar de tudo sentia-me melhor agora, cumprindo o que estava disposto a fazer e logo estaria livre. O celular tocou... era do meu trabalho...ajeitei as crianças e atendi.
— Alô...
— Pedro, o chefe quer saber se você vem hoje?
— Claro que vou, dona Mirtes
— Você está aonde?
— Na praia...
— Na praia, Pedro????????? — gritou a desgraçada.
— É, sua piranha, na praia.
— Seu Pedro, por favor, pare de me xingar...
— Vai pro diabo que te carregue... Mocréia.....
Guardei o telefone aliviado. Mas aliviado ainda estava ao ver o calçadão agora à menos de cinco metros...
Pou...pou...pou.... tiroteio...
— Pega... pega ladrão....
...Continua na próxima Terça-feira.

Um comentário:

  1. Esse aí é bopm demais, caro amigo!!! PArabéns pelo texto. Um abraço, Felipe Dias

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