Site Meter CASA DAS IDEIAS: "MÃOS AO ATO" de Carlos Pinheiro

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

"MÃOS AO ATO" de Carlos Pinheiro

PARTE I
Ao atravessar a rua escura, caminho para sua casa, Marly sente-se agarrada pelo braço e arremessada contra o muro da velha fábrica. Fora pega com tamanha rapidez que sequer conseguira gritar. Desnorteada ainda, escuta:
— Manda o dinheiro para cá, se não te arrebento! O relógio também!
O marginal dava tapas em sua cabeça enquanto falava. Marly, num sopro de voz, completamente apavorada, pedia que não lhe batesse, pois já tirava tudo o que pedia, não adiantou, a voz do assaltante era cortante:
— Se gritar vou te comer também, e abre a bolsa que eu quero ver.
A cabeça de Marly girava. Nada mais fazia sentido. A iminente possibilidade do estupro, alucinou-a grita o grito do desespero. A partir daquele momento, podia apanhar morrer, não faria a menor diferença. Com fúria de animal acuado, joga-se contra o ladrão desequilibrando-o, fazendo com que fosse apoiar-se no muro para não cair. Marly corre. Os dedos do marginal ainda tocam seu ombro, depois, a sua blusa, mas não o suficiente para detê-la, imagina-se livre, ganha velocidade, mas tropeça quando em sua derradeira tentativa o bandido estica-se num vôo e toca-lhe as pernas. Sente o corpo do bandido, embolar-se ao seu.
É estabelecido um diálogo de grunhidos, uma luta de sobrevivência. Um tiro é disparado. Os corpos ainda movimentam-se indiferentes ao estampido, até que vão desvanecendo-se pouco a pouco até pararem completamente.
Marly sente horror ao deparar-se com os olhos brilhantes do marginal. Tenta soltar-se, mas, é impedida pelo aperto forte e último estertor do bandido que balbucia alguma coisa e silencia. Marly permaneceu imóvel. Ao não sentir nos eternos segundos seguintes reação, empurrou-o com repugnância, mas, a mão do marginal permaneceu sobre a sua. Irritada empurrou-a com asco, amaldiçoando o destino que insistia em mante-lo colado a si.
Ainda segura o revólver que usara: um Rossi, calibre 32, prateado, que seu marido comprara e pedira que levasse para casa.
Chorava, tinha medo. Ninguém na rua. Só ela, e a atmosfera de morte e dor. Lentamente se levanta. Tem braços e pernas arranhados. Pega sua pulseira jogada perto do ralo, depôs vê, que seu relógio acabara ficando ao lado do assaltante. Aproximou-se cuidadosamente, e, num bote, agarra seu pertence. Pára, olha o corpo. Aquilo lhe parecia irreal, talvez um pesadelo que seria rompido com um esfregar de olhos, tentou, mas o cadáver continuava ali. Descontrolada, passa a bater no corpo inerte.
— Filho da puta! Nunca mais vai assaltar ninguém!
Sentou-se ao lado do cadáver e começa a chorar. Matara. Tinha clareza dos motivos, mas isso não bastava. Precisava de mais explicações. Negava-se a ser protagonista da violência que tanto combatia.
De repente, sentiu suas forças esvaírem-se. Quando voltou a si, não sabia quanto tempo se passara. Escutou um limpar de garganta. Arrepiou-se quando viu o assaltante sentado a seu lado. O fato de ter um buraco no meio do peito estranhamente acalmou Marly.
— Qual é? Está arrependida é? Vai dizer que está com drama de consciência? — Pô, só queria levar uma mixaria tua... Precisava me matar? Aquele monte de gritos, tapa na tua cara, dizer que ia te comer, era só pra assustar. Sabe como é que é, né? Mas aí: Tu deu mole. Isso é hora de tu andar aqui, porra... Ta maluca?
— Fica quieto! Trabalho em dois lugares, pago luz, água, não tenho carro, não tem ônibus nessa cidade, não me divirto, tenho 35 anos, e quer saber de uma coisa, estou cansada de gente como você.
— Você esta nessa porque quer. Eu tinha 19 anos bem curtidos. — ironizou
— Vagabundo! Tinha que arrumar um batente, igual a todo mundo.
— Pra que? Tá sonhando? Acha que eu ia aturar patrão pra ganhar salário mínimo?
— E aí você morreu...
— Pó, nem lembra isso... Mas, aí! Gastava muito, tia... Roupa nova no final de semana, muito pó do bom. Minha preta... Ah! botava ela muito gata, tudo de marca; saia, sapato, calcinha, bolsa. Ia passear num carro novinho que ela escolhia, ia lá roubava e pronto! É muita onda que tiro tia....
— Tirava, filho da....
— Aí... xinga minha mãe, não! Deixa ela em paz, não mete ela nessa parada! Aquela é uma santa, morou? Segurou a onda depois que o velho se arrancou. Segurou a minha onda e a dos três moleques, dois irmãos meus e um, que ela pegou para criar, é mole. Sozinha, sabe lá o que é isso. Uma mulher de frente. Queria ver você no lugar dela. Aí... Nos tiroteios deitava em cima da gente... E tome bala varejando o barraco.
Mas aí; tu falou em trabalho, não falou? Agora estou lembrando. Já fui flanelinha, é guardava vaga de carro pra bacana, sabe qual é? Estava até legal. Aí pintou um cara mais velho, eu era moleque, me deu porrada, disse que o ponto era dele e me expulsou. Falei com a rapaziada, neguinho encheu o cara de azeitona. É, é lei do cão, mas aí sujou... Enquanto eu estava lá, o dinheiro ia todinho pra mão de minha mão. Depois comecei a fazer um ganho aqui, outro ali, descolava uma grana com os gays... Hoje a velha já tem até um barraco de tijolo. Esqueceu até aquele papo de jogador de futebol pra mim, que ela falava quando bebia. Pra ser jogador, tem que ser é cagão, igual Ronaldinho...
— Só queria moleza, né rapaz? Nem trabalho, nem estudo...
— Estudei um pouquinho. Gostava daqueles papos de história. A professora contava aquele monte de mentiras. É ou não é, fala aí?
— Que mentira o que, rapaz!
— Mas, já tinha fumado um tremendo cigarrão de maconha, e viajava... hehehe! Dá tal da matemática quero e distância, aquele monte de número. Tira, põe, multiplica, divide. Não entendia nada! Dava confusão demais na minha cabeça. Larguei né, aquilo não dá pra mim não.
— Você é mau, violento, perverso. Se estivesse armado tinha atirado em mim, disse que ia me comer. Por que não foi pegar de quem tem? Por que você não se vinga de quem faz isso contigo?
— Xi! Pêra aí! Só queria me dar bem, curtir a vida um pouquinho, morou?
— Você é uma vítima, estôrvo
— Vítima tua, pô!
— Minha não! Você já estava morto, igual a um monte de gente da sua idade que nunca vai ter perspectiva de nada.
— Ta parecendo papo de candidato. Aí; tu é política, é?
— Nada disso.
— Aí tia, eu não me acho vítima de nada. Cada um escolhe seu caminho. A senhora escolheu ser careta, chata, ficar velha, ter um monte de filho. Eu não. Corri rápido. Se desse certo, aí, tava numa boa. O problema é que tu me pegou. Mas quem é que vai dizer, que uma coroa igual a você esta com um “ferro” na bolsa?
Vem cá! Tu me chamou de vítima. Esse “vitima”, você quer dizer “ vítima do sistema”, né?
— É
— Xí, já escutei esse papo. Agora me responde? Trabalhando feito um burro em dois lugares, pegando fila para tudo, sem carro, chegando a essa hora.... Ô minha tia, vítima é tu, pô!
— Marly, olhava aquela figura que acabara de matar... Naquele pragmatismo de bandido, construíra uma lógica de existência. Um método de vida. Você faz assim, porque daqui a pouco morre, pronto. Lei própria, moral própria, sentido nenhum. Para aquele marginal, matar ou morrer era um fato simples, banal. A velha tragédia brasileira, de um lado quem tem dinheiro. Do outro, homens, mulheres e crianças que sobrevivem. E no meio, uma classe de assalariados, morrendo de medo de andar na rua, de entrar num ônibus, preferindo a ação violenta e rápida da polícia. Os governos assistem a tudo no papel de coveiros oficiais.
— A vida não foi difícil só para você não, rapaz
— Aí, ta na hora de você se mandar! Essa rua é o bicho, de repente passa outro vagabundo... Pior a polícia... Vai querer arrumar um dinheiro em cima de você... E depois ainda tem a turma dos direitos humanos
— E você acha que tem algum direito?
— Eu não, mas eles acham
— E você, levando tudo numa boa, né
— Não é assim não! Uma vez a polícia me pegou. Pô, apanhei muito. Me levaram para o juizado. Um tira começou a me olhar diferente, com a maior cara de tarado. Aí apareceu um pessoal desse. Comecei a gritar. O polícia tentou fechar a porta... aí é que eu gritei mesmo. Disseram que queriam ver as salas. Foi o que me salvou. Se fico, o tal tira ia me arrebentar na porrada, se eu não faço as “coisas”. Os caras dos direitos humanos me levaram para casa, falaram um tempão com minha velha. Senti a maior firmeza. Depois foram embora e eu também fui. Caí no mundo — Disse sorrindo o marginal – Outro dia, foi a maior furada. Estava fazendo um ganho lá em Copacabana, rendi um velho. Quando olho direito, era o cara que me salvou na delegacia...Poxa, fiquei mal, liberei ele na hora, acho que ele me reconheceu também. Grilo, meu amigo, queria porque queria dar porrada no cara. Quase matei meu parceiro; só falei pra ele: — Se bater no cara, vou te mandar pra vala. O moleque ficou macho, mas segurou a onda. Tinha a minha idade o Grilo, gostava de queimar um baseado, conhecia ele desde pequeno. O pai dele também roubava, mas morreu rápido. Também, foi se meter com a mulher do dono da boca... Caiu. Grilo viu tudo, era pequeno. Quando fez 15 anos, matou o cara, é mole?! Me disse, que era o seu presente de aniversário. Foi ele que me deu o primeiro revólver. Falou que com um ferro a gente podia se defender e arrumar um dinheiro. Eu escondia com o maior cuidado. À noite, ia pra Candelária, sabe onde é, não sabe? Neguinho ficava cheio de medo. Saia todo mundo batido. Pô, aí; Grilo também morreu a toa, a toa. O pessoal fez uma intera, comprou um caixão, até legal. Chorei e tudo. Aí, grande Grilo... parecia gente fina, deitando de terno com as mãos no peito. Você sabe que tem nego, que nem eu e Grilo, que foi viver lá no estrangeiro? Tem casa e tudo. Aqui é foda.
— O Brasil é ótimo. Não fala mal de nosso país, não. Falta é luta!
— Que nada tia, que papo furado! Meu velho era metido a ser todo certinho. Falava um monte de besteira. Dizia que trabalhar era bom, lutar, mas, não conseguia arrumar trabalho. Só vivia parado. Todo dia saia cedo. Chegava tarde da noite, nem batalha, nem dinheiro, nada. Eu, minha mãe, e os moleques no maior miserê. Um dia sumiu; aí, se arrancou. Minha mãe ficou procurando um tempão... nunca mais. Antes de roubar era a maior miséria, fome, morou? Barraco sujo de montão. Dei jeito, ta sabendo! O Brasil nunca me deu nada, ta sabendo! Tem lugar lá na favela que você tem que pedir licença aos ratos para passar. Cadê o Brasil?
Ninguém adianta o lado de ninguém. Outro dia, a Marilda levou o filho num médico na cidade. Juntou dinheiro e tudo pra pagar um particular. Chegou lá o preço já tinha aumentado, não quiseram nem saber. Marilda voltou e teve que se virar com o postinho daqui. Tinham que prender o dono do lugar, é ou não é? moleque quase passou dessa para a outra, mas escapou.
— Não é ótimo, mas salvou a vida do garoto.
— Cagada do moleque, aquele troço só vive lotado.
CONTINUA NA PROXIMA QUINTA-FEIRA

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